“Aprendi a cozinhar cozinhando e peguei tanto gosto pelo trabalho que a minha cozinha estava sempre limpinha. Eu tinha um carinho e um cuidado muito grande pela cozinha”, conta a merendeira aposentada Maria das Graças Soares Barbosa, que trabalhou no Colégio Estadual Maria Polidoro, em Canoas, no Rio Grande do Sul, entre 1989 e 2013. “Até hoje encontro alunos que me reconhecem e falam ‘tia, como era boa a sua merenda’”.
A história de Maria das Graças é uma das que fazem parte do livro Merendas e Afetos , organizado por Sandra Regina Barbosa Soares Coleman. A publicação traz 26 narrativas biográficas, todas de pessoas negras de diferentes estados brasileiros – Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul – e do Distrito Federal.
O livro reúne histórias de vida de 26 mulheres e homens negros, aqueles que, muitas vezes, são chamados de tias e tios: a tia da merenda, a tia do corredor, o tio do portão, o tio da limpeza. São funcionários que costumam conhecer os estudantes às vezes melhor que os próprios professores e que são fundamentais para o funcionamento das escolas. O livro pretende dar nome e sobrenome para essas pessoas, trazendo a história de vida de cada um, indo muito além de apenas tia ou tio.
“Apesar de não ter muito estudo, trato todo mundo bem, aprendi com a vida”, diz outra biografada, Fátima Souza de Oliveira, conhecida carinhosamente como Fatinha, responsável pela limpeza do Centro Integrado de Educação Pública (Ciep) 370 – Professor Sylvio Gnecco de Carvalho, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro.
“Ser tia da limpeza pra mim é gratificante. Com os alunos, aprendo e ensino. Às vezes, me sinto a segunda mãe deles. O carinho e admiração é recíproco. Sou muito grata pelo trabalho que tenho”, diz, no livro, Fátima.
Narrativas de poder

O livro é o terceiro de Sandra Coleman, também autora de Mulheres
negras brasileiras – Presença e poder, da Exposição ao livro (2020),
Filhos, pais e avôs – Narrativas de presença e poder (2021). Em todas
as obras, Sandra reúne narrativas de pessoas negras, sempre escritas por
mulheres negras. Na terceira obra, a escritora voltou a atenção para as
escolas.
“Eu vejo essas merendeiras, inspetoras, elas são invisibilizadas,
elas são invisíveis para a direção escolar. Muitas, a direção escolar
ou os professores não sabem o nome delas, que não participam ativamente
das decisões da escola. Eu acredito que elas sabem muito mais sobre os
alunos do que os professores porque têm um convívio maior com os alunos,
porque estão ali vendo o que os alunos estão fazendo no corredor.
Quando eles vão para a merenda, a tia da cozinha está ali, ela está
vendo tudo”, diz a autora do livro, que concedeu entrevista à Agência Brasil no Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), no Rio de Janeiro.
Para conduzir as histórias, Sandra Coleman elaborou uma lista de
perguntas a serem feitas para os biografados – nesta obra, 24 mulheres e
dois homens. Entre as questões estão perguntas sobre a história das
famílias, sobre avós e bisavós e também sobre episódios de racismo
sofridos.
“O livro traz algumas características da sociedade brasileira”,
diz a escritora. “A questão do trabalho infantil, muitas mulheres que
começaram a trabalhar, crianças com 5, 6 anos de idade, você vai
encontrar a questão do serviço doméstico, você vai encontrar a
escravização. Em pleno [ano de] 1950, no interior, ainda existiam
pessoas vivendo na escravidão”, ressalta.
O foco de Merendas e Afetos , como destaca o título, é a merenda
escolar. A merenda é considerada fundamental nas escolas brasileiras
para a permanência dos estudantes na escola. A alimentação é inclusive
política pública nacional, implementada pelo Programa Nacional de
Alimentação Escolar (Pnae), que repassa recursos financeiros federais
para o atendimento de estudantes matriculados em escolas públicas.
“Tem [no livro] caso de merendeira que não seguia a ordem da
nutricionista da prefeitura. Ela falava que eles mandam fazer purê de
batata e ela fazia purê de inhame, porque inhame é mais nutritivo. E as
crianças comiam purê de inhame achando que era purê de batata. Então,
assim, elas são fantásticas, sabe?”, destaca a autora da obra.
Histórias de muitasTanto Maria das Graças quanto Fátima são porta-vozes de história
vividas por muitas mulheres negras. “Sofri racismo em uma das casas em
que trabalhei, em que a irmã da patroa disse que não gostava de gente
preta. De preto só gosto de feijão”, lembra Fátima no livro. Ela conta
também que, na escola, encontrou amparo: “Quando trabalhei em uma escola
particular, um aluno me chamou de preta burra. A diretora era negra,
bem estruturada, não se conformou, chamou os pais dele e fez ele pedir
desculpa na frente dos pais, e ele nunca mais fez isso.”
De acordo com a Constituição Federal, o racismo é crime
inafiançável no Brasil. Quem comete o ato racista pode ser condenado
mesmo anos após o crime. A Lei 14.532, sancionada em 2023, aumenta a
pena para a injúria relacionada a raça, cor, etnia ou procedência
nacional. Com a norma, quem proferir ofensas que desrespeitem alguém,
seu decoro, sua honra, seus bens ou sua vida poderá ser punido com
reclusão de 2 a 5 anos. A pena poderá ser dobrada se o crime for
cometido por duas ou mais pessoas.
Mesmo em um país onde as pessoas negras representam 55,5% da população, Maria das Graças conta que sofreu racismo.
“Uma criança derramou a merenda no chão, e a professora falou:
‘Vamos, negra, limpar é o seu serviço’. Isso na frente das crianças.
Engoli quieta e depois de servir a merenda procurei a Neide, a minha
diretora, uma pessoa abençoada, que me defendeu”, diz Maria das Graças
na publicação.
Graça afirma que, hoje, é ela que se define: “Se me perguntarem
quem eu sou, respondo: Negra, mãe, avó, carnavalesca, capoeirista e
filha de Oya. Me considero uma verdadeira guerreira.”
Uma sobe e puxa a outraAs experiências de vida dos biografados também ressoam na história da
própria autora. Ao reunir experiências de outras pessoas, Sandra
Coleman ressignifica a própria narrativa. Ela nasceu em São Gonçalo,
região metropolitana do Rio de Janeiro. De família pobre, desde cedo,
trabalhava ajudando a mãe nas tarefas domésticas.
Sandra diz que sempre sonhou fazer um curso superior. Desde cedo,
foi desencorajada. “Eu tinha o sonho de entrar na universidade, mas, à
minha volta, os meus amigos eram todos não negros. Porque a gente tem
essa coisa, hoje em dia, então eles não eram negros. E eles falavam que
faculdade era besteira, que estava cheio de engenheiro trabalhando de
gari. Para que eu ia fazer faculdade? Mas eles foram”, lembra.
Ela passou por uma série de empregos, e, em uma deles, chegou a
ser escondida do dono da empresa porque ele não podia saber que tinha
uma funcionária negra contratada ali.
Foi no Instituto Palmares de Direitos Humanos (IPDH), que sua
consciência racial “explodiu.” Lá, pela primeira vez, ela conta que foi
chamada de bonita. “Naquele momento, eu fiz assim: ‘Eu? Peraí, ela tá
falando comigo? Como assim? Bonita? Eu? Eu, bonita?’. E eu levantei e
fui pro banheiro, olhar no espelho. Eu fiquei assim: ‘ peraí , a mulher
disse que eu sou bonita? Como? Eu?’. Porque eu nunca, 38 anos de idade,
eu nunca tinha ouvido alguém dizer que eu era bonita.”
Sandra realizou o sonho de ir para a universidade e tornou-se
bacharel em artes-espanhol e mestra em estudos profissionais, com
concentração em educação multicultural. Em 2005, conheceu o marido, o
advogado americano Major Coleman, e hoje vive nos Estados Unidos.
O primeiro livro nasceu de uma exposição que fez para mostrar aos
norte-americanos que o Brasil tem, sim, mulheres negras acadêmicas,
pois os estudantes que chegavam nos Estados Unidos eram todos não
negros. Foi a exposição Black Brazilian Women: Presence and Power , na
Universidade do Estado de Nova York. Sandra Coleman diz que ainda quer
escrever mais sete livros, totalizando dez.
Em todas as obras, ela busca contar histórias de pessoas negras e
trazer junto mulheres negras para escreverem, ou a própria história, ou
a história de outras pessoas. “Eu acredito muito no uma sobe e puxa a
outra. Eu acredito no ubuntu , eu acredito no, juntas, somos mais
fortes”, diz. Ubuntu é uma palavra de origem africana que remete a uma
filosofia que se baseia na interdependência entre as pessoas. Pode ser
traduzida como “Eu sou porque nós somos”.
O livro Merendas e Afetos: Narrativas de presença e poder pode ser adquirido no site da editora Revista África e Africanidades .
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