Mensagens obtidas pelo jornal argentino La Nacion e pelo site de notícias especializado em criptomoedas CoinDesk mostram um dos criadores da criptomoeda $Libra afirmando que fazia pagamentos ao governo de Javier Milei.
Nas trocas de mensagens com empresários acessadas pelos portais, Hayden Davis, com quem Milei chegou a se reunir presencialmente na Casa Rosada no ano passado, diz especificamente que envia dinheiro à irmã de Milei, Karina, que também é secretária-geral da Presidência.
A principal mensagem teria sido enviada em 11 de dezembro passado, antes do atual escândalo do criptogate. Era para um executivo de uma empresa de investimento em criptomoedas. Davis buscava lançar um memecoin (ativos financeiros digitais baseados em tendências, ou memes, da internet, como a própria $Libra) vinculado a Milei.
Ele diz: “Genial, também podemos fazer com que Milei compartilhe no X, faça reuniões com a pessoa e promova [a criptomoeda]. Eu controlo esse nigga [termo ofensivo em inglês com o qual brancos se dirigiam a negros na época da escravidão]”.
O interlocutor lhe diz que aquilo era uma loucura, e ele acrescenta: “Envio dinheiro à sua irmã [Karina Milei] e ele assina o que digo e faz o que quero. Uma loucura”.
Não há nenhuma evidência de que as afirmações sejam verdadeiras e, até o momento, a Casa Rosada não comentou as mensagens divulgadas.
Em outra das conversas, pessoas que haviam investido na $Libra dizem que Hayden Davis estava “fora de controle”. “Louco; ele sentia que tinha descoberto a fórmula de imprimir dinheiro.”
O porta-voz presidencial da Argentina, Manuel Adorni, disse nesta terça-feira (18), antes da divulgação das mensagens, que é “insultante” especular que tenha havido subornos no caso.
“Entendemos que não houve nenhuma atitude que fosse contra a ética pública”, disse.
Na última sexta (14), o presidente argentino compartilhou no X uma divulgação da criptomoeda que prometia ajudar pequenos e médios empreendedores e cuja capitalização, com o endosso, subiu e depois despencou. Os envolvidos são acusados de fraude.
Milei apagou a publicação horas depois, retratando-se e dizendo desconhecer os detalhes. Sua gestão então anunciou a criação de um escritório anticorrupção para investigar o caso, criticado por opositores por ter pouca transparência, já que seria um órgão do Executivo investigando o próprio Executivo.
O tema chegou à Justiça, que investiga o caso. Ao menos um pedido de impeachment contra Milei já foi apresentado, ainda que sua viabilidade seja difícil diante da atual conformação da Câmara e do Senado locais.
Milei deu uma entrevista a uma TV local nesta segunda-feira (17) para falar sobre o tema, mas o assunto acabou ofuscado pelo fato de que o programa foi editado a pedido de seu assessor, Santiago Caputo, atualmente uma das pessoas com mais poder político na Argentina.
Depois de sofrer forte queda nesta segunda por causa do escândalo, a Bolsa de Buenos Aires fechou em forte alta, de 6,10%, nesta terça.
O presidente viaja nesta quinta-feira (20) para os Estados Unidos, onde encontra um aliado que também já esteve envolvido em um caso com memecoins: o presidente Donald Trump.
Após pedido de equipe de Milei, TV edita trecho de entrevista sobre criptogate
MAYARA PAIXÃO, BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – A edição de uma entrevista com o presidente Javier Milei sobre o escândalo batizado de “criptogate”, exibida nesta segunda-feira (17) por uma TV argentina, ofuscou o tema central da conversa, na qual o chefe da Casa Rosada fazia uma espécie de prestação de contas.
Um trecho em que um assessor do presidente interrompe e reclama de uma pergunta não foi exibido na TV, mas foi divulgado no YouTube do canal TN (Todo Noticias) -e posteriormente apagado. O recorte, que tem pouco menos de 2 minutos, circulou nas redes sociais, foi compartilhado pela oposição e foi abordado por jornais locais.
Milei dava sua primeira entrevista após o escândalo da criptomoeda $Libra, que divulgou em sua conta oficial no X e registrou uma subida exponencial de valor e, logo depois, colapsou. O presidente foi acusado de fraude na Justiça, e já há um pedido de impeachment.
Questionado sobre as possíveis implicações jurídicas, Milei diz na entrevista que não cuida desses temas. “Seria imprudente da minha parte falar sobre. Quem mais entende é o nosso ministro da Justiça, Mariano Cúneo Libarona”, diz.
A isso, o jornalista Jonatan Viale diz que Milei participou da divulgação da criptomoeda como cidadão e como presidente. Milei diz: “É bom que você destaque que tuitei como um cidadão, porque compartilhei na minha conta pessoal [no X]”. O jornalista, então, insiste: “Está bem, mas o senhor é o presidente.”
O diálogo continua brevemente, até que entra no enquadramento da câmera o assessor de Milei e uma das figuras que, mesmo sem cargo público, têm mais poder na gestão: Santiago Caputo. Ele cochicha algo no ouvido do presidente e depois ao jornalista, que diz: “Claro, já me dei conta de que [isso] pode trazer problemas judiciais [a Milei].”
Viale então recalcula a entrevista, interrompe essa consulta e volta a perguntar sobre o tema da criptomoeda. A reportagem procurou a assessoria do canal TN, que ainda não comentou o tema.
Nesta terça-feira (18), figuras ligadas a Milei tentaram colocar panos quentes na situação. Seu porta-voz, Manuel Adorni, disse que “Santiago Caputo interrompeu a entrevista porque tem o defeito da excelência e notou que aquilo podia deixar alguma confusão nos telespectadores”. Afirmou, porém, que o próprio Milei não teria gostado e teria dito, ao desligarem as câmeras, que aquilo foi “desnecessário”.
A relação da imprensa argentina com os governos de turno sempre foi turbulenta. Mas, a despeito de sua postura hostil contra jornalistas, a quem já chamou de “mentirosos seriais”, “imbecis” e “chantagistas”, Milei conseguia espaços de projeção para suas ações na imprensa local, com entrevistas nas quais, em geral, sempre se saía bem.
O presidente compartilha poucas entrevistas, e sempre com repórteres conhecidos por terem afinidade política com ele. Internacionalmente, suas conversas são prioritariamente para jornais dos Estados Unidos e da Europa, como The Washington Post e Financial Times.
Um dos opositores que se aproveitou da edição da entrevista foi o ex-presidente Alberto Fernández, peronista que foi substituído por Milei no cargo e que está, ele próprio, no centro de outro escândalo: acaba de se tornar réu em uma ação sobre violência contra a ex-esposa.
No X, Fernández disse, em referência ao jornalista Jonatan Viale: “Eles rasgam as roupas se os chamam de ‘gordos leitosos’, mas não têm vergonha de encobrir uma fraude com uma entrevista roteirizada”.
A passagem depreciativa faz referência a um episódio de 2020, durante a pandemia de Covid, no qual Fernández curtiu e compartilhou, em sua conta no Twitter, um tuíte que descrevia Viale como um “gordo leitoso” por suas críticas à condução do combate da crise sanitária.
Foram muitas as críticas de opositores e de organizações jornalísticas na ocasião, e o então presidente apagou a publicação.
Fernández disse, na época, que se tratou de “um erro involuntário que levou esta conta a compartilhar uma crítica que eu respeito, mas que continha adjetivos que acredito que é melhor evitar”. “Lamento se alguém se sentiu magoado com isso”, completou.
Javier Milei enfrenta o primeiro escândalo de sua gestão, iniciada em dezembro de 2023 e até aqui bem avaliada, no geral, pelo êxito do programa econômico, fundamentalmente na diminuição da inflação, que retrocedeu mais de 20 pontos percentuais em um ano.
O presidente ultraliberal parece estar prestes a conseguir um novo acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional), e ainda é incerto o impacto que o escândalo do criptogate terá nessa área. Em sua defesa, ele diz que apenas divulgou a $Libra, mas não a promoveu. Milei recebeu em outubro passado, na Casa Rosada, os criadores da criptomoeda que prometia ajudar pequenas e médias empresas.