Daniel sempre teve do bom e do melhor. Passou a infância num condomínio de luxo em Alphaville, zona de bacanas perto da capital paulista. O pai, dono de uma revendedora de carros em Carapicuíba, esperava que seguisse o negócio da família -o que incluía ter em seu nome, ainda moleque, três carros, duas motos e um imóvel.
Daniel preferia outra coisa. Queria ser jogador profissional de videogame e era especialmente craque em Counter-Strike, popular jogo de tiros. Ele, contudo, acabou enveredando para outro ramo. Virou traficante internacional de drogas.
Você já viu esse filme antes. A história de Daniel ecoa a do protagonista de “Meu Nome Não É Johnny”, longa de 2008 sobre um playboy que, sem nunca ter pisado na favela, passa a traficar na zona sul carioca.
“Nobres Traficantes”, livro do jornalista Bruno Abbud, encorpa esse fenômeno com densidade literária. O autor acompanha o tema há mais de uma década e traça, em detalhes, como jovens do tipo de Daniel se inserem nas engrenagens do crime global.
Em paralelo, descortina o mercado de drogas de elite em São Paulo, a logística da cocaína mundo afora, a balbúrdia midiática em torno desses casos e a corrupção policial que mira justamente jovens nascidos em berço de ouro.
O que leva essa juventude a traficar costuma embaralhar a cabeça de muita gente. Abbud diz escutar direto perguntas do tipo: “Se eles já são de famílias abastadas, pra que correr atrás de mais dinheiro? É ganância? É o quê?”.
Após anos investigando o tema, concluiu que, em boa parte, tem a ver com adrenalina, “essa coisa de se colocar sob risco”, e prestígio social. “Geralmente são pessoas jovens que se sentiam em filmes de ação, uma coisa meio hollywoodiana”, diz, e que “acabam adquirindo um poder de fazer muito dinheiro”.
Ele próprio presenciou, em sua apuração, cenas explícitas de ostentação. “Cansei de ver dinheiro vivo em muita quantidade. Uma vez, vi uma cama de casal toda forrada com nota de R$ 100.” Coisa de R$ 60 mil, esbanjou a dona da bolada.
É falar em tráfico e logo vem à cabeça um jovem da quebrada, que talvez esteja com uma camiseta enrolada na cara carregando um fuzil. Alguém de família pobre “que quer comprar uma roupa legal, um tênis massa”, diz Abbud. “Essa é uma imagem que a cultura engendrou na sociedade.” E dá-lhe produções como “Cidade de Deus” ou livros de Caco Barcellos.
Todos ótimos, mas que não contam a história toda. Fica de fora uma fração minoritária desse enredo, os tais “nobres traficantes”, e aqui cabe uma autocrítica à imprensa, segundo o autor jornalista.
“Quando você fala em traficante de classe abastada, acha muitas palavras nas manchetes: empresário, aluno encontrado com maconha. Nas áreas mais pobres, aí são outros termos. Criminoso, em geral. Antigamente usavam até delinquente.”
Abbud introduz sua obra lembrando de um estudo da USP que analisou 667 autos de prisão em flagrante por tráfico. Dois casos ganharam destaque.
Há o morador de rua de 30 anos, 8,5 gramas de maconha com ele, autodeclarado usuário. Pena de quase seis anos de prisão. E tem a apreensão de 501 gramas da erva e uma balança de precisão com dois rapazes de 19 e 25 anos, moradores da zona oeste paulistana. Um deles cursa faculdade, o outro já graduou. O juiz acata o argumento de droga para consumo pessoal e lhes concede liberdade provisória.
“A Justiça é composta por uma elite, geralmente branca, que tem suas crenças, suas inclinações ideológicas e políticas”, afirma o autor. “Isso acaba resvalando na maneira como o sistema judicial trata os cidadãos a partir da classe a que pertencem. O pau que dá Chico não dá em Francisco.”
Se os mais pobres superlotam prisões, os ricos viram alvo de extorsão, com policiais corruptos tocando o que Abbud chama de “indústria de flagrantes”. Nem todos os alvos são traficantes. Podem ser “qualquer rapaz ou moça de 20 e poucos anos que gostasse de usar drogas e cujos pais dispusessem de ao menos 1 milhão de reais na conta bancária”, explica um informante citado no livro.
Os oficiais plantam drogas e cobram suborno para liberá-los. Há histórias de pais que despejaram meio milhão para soltar o filho. “Uma rede de arapucas institucionalizada.”
Claro que há quem de fato esteja envolvido com a criminalidade. Não por acaso Abbud escolhe contar a ascensão e queda de Daniel, o playboy de Alphaville que abandona quatro faculdades, vai fazer intercâmbio na Austrália e de lá se implica no comércio global de cocaína.
A certa altura, já endinheirado pelo ofício ilegal, o brasileiro se vê morando num apartamento de 200 metros quadrados, no 50º andar do terceiro edifício mais alto da litorânea Gold Coast.
Toma café da manhã de frente para o azul infinito, faz musculação, joga Counter-Strike, almoça sushi, fuma um baseado e fala com o pai por Skype. “Dizia a ele que tudo ia muito bem, que aprendia inglês com afinco, e o honestíssimo pai o sossegava do outro lado do globo”, narra o autor.
A rotina luxuosa e algo pacata serve de fachada para uma carreira alucinada que, em menos de um ano, o levaria ao cárcere. Hoje já em liberdade, ele leva uma vida anônima com a mulher e o filho em São Paulo.
Abbud reconstrói sua trajetória usando um pseudônimo, para proteger sua identidade. Seu nome não é Daniel.
NOBRES TRAFICANTES
– Preço R$ 79,90 (312 págs.); R$ 34,90 (ebook)
– Autoria Bruno Abbud
– Editora Zahar


